LUIZ
MORGADINHO – A ONTOGÉNESE DO QUOTIDIANO
“Viver
e deixar viver são decisões da imaginação. A existência está algures noutro
lado. Tudo nos leva a crer que há um determinado ponto no campo espiritual em
que a vida e a morte, a imaginação e a realidade, o comunicável e o
incomunicável deixam de encarar-se como contradições.”
(André Breton, “Le Surréalisme et la peinture”)
Muito se tem
escrito, ao longo de quase um século de existência, sobre a tremenda revolução
cultural que foi o surrealismo. O seu traço essencial – a tensão exasperada e
frenética – percorre todo o contexto estético e cultural estilhaçando todas as
formas de expressão conhecidas e obrigando-nos a uma mudança radical do ponto
de vista. E fá-lo de uma forma assustadoramente provocante. Não lhe
interessando em princípio a produção de qualquer arte, é a revolução absoluta,
permanente o seu objetivo – o caos. Aprofundando o “mistério da vida”, herança,
segundo Baudelaire, de Vitor Hugo e do Romantismo, os surrealistas vão mais
longe ao buscar uma obscuridade reveladora de um outro universo. O seu objetivo
é desnaturalizar o mundo, torna-lo estranho, para que, contraditoriamente, se
possa tornar novamente conhecido. Estabelece-se uma correspondência entre as
desordens preparadas do espírito e as metamorfoses e revelações do mundo. O
mundo vem ao encontro do mistério, cede ao seu apelo. “O próprio mundo real
transforma as suas estruturas, quebra as barreiras entre o subjetivo e o
objetivo, abole todas as suas antinomias, realiza essa total revolução a que
aspira uma alma de fogo, ela mesma fogo universal”, como afirma Jean Cassou.
Não estranha, pois, que vejamos o surrealismo deitar mão da poesia, das
descobertas freudianas, das revelações hermetistas e dos místicos, dos ritos
primitivos e dos mitos – “o que de mais próximo temos para conceptualizar o que
não é conceptualizável – o infinito”, no dizer de Deepak Chopra.
É na pureza desta
raiz profunda que entronca a pintura de Luiz Morgadinho. Uma pintura que nos
fascina desde o primeiro olhar pela limpidez de conceitos e pela fidelidade
absoluta ao ideário de Breton. Expliquemo-nos:
Para o pintor
comum, o objeto a pintar torna-se objeto de pintura, ou seja, perde a sua
qualidade intrínseca para se transformar num composto de linhas, cores,
proporções, sombras e luzes – e isto concentra todas as intenções do pintor.
Mas o pintor surrealista não tem que chegar a esta instância. Para ele, o
objeto continua a ser objeto do mundo exterior. E é este mundo exterior que o
pintor surrealista ataca, para nele provocar a desordem e o caos, fazendo daí
surgir mistério e surpresa, no dizer do citado Jean Cassou. A sua operação
consiste em reunir essa imagética do quotidiano de maneira desconcertante,
desalojando as imagens exteriores do lugar que habitualmente ocupam. Com isto
constrói uma imagem desarmónica surpreendente onde o mundo exterior já não se
reconhece, imagem, metáfora ou como quisermos designar feita do choque não de
sinais plásticos mas de imagens extraídas em estado bruto ao seu ambiente natural.
Com este jogo fantástico, esquiva-se o pintor de enfrentar a realidade,
destruindo-a ao invés de a representar. Como afirmou Lhote: “pode ser tão
agradável lutar com a realidade como desprezá-la, usar de astúcias infinitas
para se furtar aos seus golpes como fugir dela”…
É neste paradoxo
essencial que assenta a pintura de Luiz Morgadinho. Poucos terão interiorizado
a mensagem de Breton como este artista. A estranha lucidez do seu olhar crítico
e satírico, que numa primeira análise parece perpassado de intenção política –
desimagine-se o observador e o próprio artista se assim o pensa – resulta da
mais profunda coerência do absurdo. A este pintor se poderiam aplicar as
palavras de Alfred Kubin: “Pertenço ao número daqueles bichos estranhos que
acreditam que sonhamos permanentemente e não só a dormir. O que acontece é que
o sonho, quando se está acordado, é na maior parte das vezes ofuscado pelo
deslumbrante clarão do entendimento.”
Luiz Morgadinho
parece gritar, com a sua obra, o desconcertante slogan surrealista: “Há que
acabar com a beleza, com a honrada arte, último resultado da lógica! Ao diabo
com a lógica! A arte é uma estupidez!...”
Bem longe de
certos pseudo-surrealismos soft contemporâneos, a obra de Luiz Morgadinho
impõe-se pela coerência estética e filosófica. Como último reduto da verdade,
as suas pinturas congregam uma visão assustadoramente real, nesta ontogénese do
quotidiano. Não parecerá contraditório afirmá-lo? Talvez não: nunca como hoje a
nossa sociedade apresentou um grau de absurdo tão evidente. Senão vejamos: é do
“Segundo Manifesto do Surrealismo”, de Breton, publicado em 1930, que retiramos
o seguinte texto: “O ato surrealista mais simples consiste em sair para a rua
com um revolver e disparar ao acaso sobre a multidão…” Não nos parece isto
demasiado familiar nos tempos que correm?...
… É desta lucidez
que falamos, quando falamos da pintura de Luiz Morgadinho!...
Findas as
palavras, a obra permanece, irredutível, lúcida, bela, provocante…
…Deleitemo-nos!...
Guimarães,
Junho de 2012
Alberto
D’Assumpção